terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Academia, empreendimento e inovação tecnológica

Academia, empreendimento e inovação tecnológica

Ruy J.G.B. de Queiroz 

Professor associado, Centro de Informática da UFPE 


Tão profundas são as transformações resultantes dos avanços tecnológicos que não parece exagero chamar esse processo de novo Renascimento. Tampouco seria injusto atribuir a Stanford o papel de "Nova Florença". Em 1º de Outubro último foram completados 117 anos de serviços prestados (embora fundada oficialmente em 1885, a Leland Stanford Jr University abriu suas portas em 01/10/1891). Em Cities of Knowledge: Cold War Science and the Search for the Next Silicon Valley (Princeton U Press, 2004), referindo-se a um prédio construído em Goa (India) no estilo arquitetônico hispânico predominante em Stanford para abrigar uma empresa de alta tecnologia, Margaret O'Mara diz que "todo mundo quer ser não apenas um outro Vale do Silício, mas também se parecer com o Vale do Silício". Estilo arquitetônico à parte, um tanto original é o princípio norteador de Stanford: ao invés da referência direta à procura pela "verdade" (Veritas, em latim, é o slogan de Harvard), a busca pelo conhecimento como busca da liberdade vem estampada no seu motto, "Die Luft der Freiheit Weht", embora que numa língua estrangeira ainda viva. A idéia de usar tal motto veio de David Starr Jordan, primeiro presidente do "rancho do faroeste transformado em Universidade" (com 33Km2 de área e 43.000 árvores, Stanford é conhecida como "A Fazenda"), que se inspirou na reação do poeta alemão Ulrich von Hutten revoltado com a prisão de Martin Lutero: "vejam que os ventos da liberdade estão soprando!" (videtis illam spirare libertatis auram, em latim). Não sem resistência, até do conselho de curadores (que preferiram o slogan "Semper Virens", significando "sempre verdejante", nome científico da espécie de sequóia comum naquela região que pode viver mais de 2000 anos, e é a criatura viva mais alta do planeta), Jordan buscou no sentimento mais profundo de fé na primazia do indivíduo a força maior para imprimir a impressionante marca da harmonia entre o saber e a liberdade. Stanford veio a revelar toda a sua vocação de Nova Florença a partir dos anos 1970s com a chamada "cultura das start-up's": criação de empresa numa garagem, para explorar uma idéia maluca utilizando tecnologia. 

Diversas têm sido as tentativas de reprodução do ambiente criado no Vale do Silício. Em Maio último, numa palestra ao programa de empreendedorismo de Stanford, Beth Seidenberg (da grande empresa de venture capital KPCB) diz que "o ambiente em torno de Stanford é diferente de qualquer outro que eu já vi e que já foi criado por quem quer que seja. (...) Boston e San Diego podem até reivindicar a disponibilidade de infra-estrutura [para inovação], mas o Vale do Silício é verdadeiramente o eixo da inovação tecnológica". Os fatos estão aí para comprovar, pois brotaram n'A Fazenda: Google, Yahoo, Hewlett-Packard, YouTube, Sun, Cisco, eBay, PayPal, Electronic Arts, Silicon Graphics, Netflix, Nvidia, VMWare, Orkut, Dolby. Através de um simples motto invocando a liberdade do pensar, Jordan enraizou o sentimento de fé na primazia do indivíduo que parece ter protegido Stanford de sucumbir ao arquétipo da fábula da galinha dos ovos de ouro. E esse sentimento persiste nos seus ex-alunos sob forma de doações generosas: US$400 mi de William Hewlett (HP), US$100 mi de Phil Knight (Nike), US$75 mi de Jerry Yang (Yahoo), US$33 mi de Lorry Lokey (Business Wire), US$30 mi de Jen-Hsun Huang (Nvidia). Dentre os programas de arrecadação de doações de ex-alunos e simpatizantes, o The Stanford Challenge, lançado em Outubro de 2006, já se encontra bem próximo à meta traçada para 2011 (US$4,3 bi): os números de 14/10/08 indicam uma arrecadação parcial de US$3,9 bi. Difícil imaginar forma mais explícita de respeito e retribuição à alma mater.

A ciência como inspiração

A ciência como inspiraçãoArtigo do leitor Ruy J.G.B. de Queiroz

Completa exatamente dez anos de fundação, em 1º de setembro de 2008, a empresa cujo nome se transformou em verbo "universal": "se você nunca Googlou, provavelmente não está encontrando nada do que deseja online". Assim começa a descrição do perfil financeiro da Google Inc na AOL. Larry Page e Sergey Brin fundaram a Google quando ainda faziam doutorado em Stanford. Chegou um momento em que o negócio cresceu demais para ser administrado a partir do dormitório da universidade, e aí entrou em cena um professor que lhes passou um cheque de US$ 100 mil. No início, Larry e Sergey ainda tentaram licenciar a Google a outras empresas, pois queriam concluir seus PhDs, mas ninguém se interessou. Consta que a Google foi iniciada no desespero: eles não tiveram outra opção senão começar tudo sozinhos.

Segundo Judy Estrin, em "Closing the Innovation Gap" (McGraw-Hill, 2008), para que a Google viesse a ser a potência tecnológica que é hoje foi necessário mais que transformar pesquisa acadêmica sobre algoritmos de busca num espertíssimo engenho de busca para a internet. A empresa também teve que desenvolver um modelo de negócio que lhe daria uma sólida fonte de receita no longo prazo. Os programas AdWords e AdSense - que exibem discretamente anúncios pagos ao lado dos resultados do algoritmo de busca - se revelaram tão inovadores e eficazes quanto o próprio engenho de busca.

Em palestra de 2002, conjunta com o CEO Eric Schmitt, disponibilizada no portal de educação de empreendedores em tecnologia de Stanford, Larry Page revela que pesquisa básica e boas idéias são a chave para se criar tremendas oportunidades no mercado de tecnologia. Até aí, nenhuma novidade. Mas não demora muito para que o diferencial venha à tona: "uma quantidade enorme de novos conhecimentos está sendo criada o tempo todo, e muitos podem ser utilizados como fundamento para inovação". E vai mais adiante, mostrando um exemplo no qual um projeto do biólogo Robert Full (Berkeley) resultou num "robô-barata": observando que a barata vence incríveis obstáculos somente pelo fato de que suas pernas se comportam como molas, e que mesmo com pouca "inteligência" ultrapassa obstáculos difíceis, foi proposto um robô no qual a inteligência estaria no "design" e não no "cérebro" do bicho.

O título desse trecho específico da palestra é bem sugestivo: "Science as Inspiration". E a explicação é bem simples: isso é algo que as empresas freqüentemente deixam passar, e que podem realmente significar grande coisa, e o quão enormes são as oportunidades de se chegar ao sucesso em empreendimentos. "Não há como exagerar nesse ponto; há tremendas oportunidades para se usar pesquisa básica e boas idéias que você ou outras pessoas tenham. (.) Meu ponto é que existe um monte de grandes inovações por aí, muito conhecimento novo que surge o tempo todo, e, se você se depara com uma dessas coisas, e a utiliza como fundamento para uma empresa ou para inovação empreendedora em geral, você vai estar numa posição muito mais forte em termos de negócios. E esse é um bom lugar para se posicionar, se você está começando uma empresa".

Antes de Larry e Sergey, muitos foram os pioneiros de Stanford: em 1969, o Stanford Artificial Intelligence Lab, fundado por John McCarthy, tornou-se um dos primeiros nós da ARPAnet, a precursora da internet. Cinco anos depois, Vinton Cerf ajudou a desenvolver o protocolo TCP, e em 1984 Leonard Bosack e a aluna de economia Sandy Lerner fundaram a Cisco. Dez anos mais tarde, Jerry Yang e David Filo, doutorandos em engenharia elétrica, iniciaram a Yahoo!

Tendo sido fundada em 1891, Stanford somente veio a revelar ao mundo sua vocação de "transformar o mundo através da inovação tecnológica" a partir dos anos 1970 com a simples idéia de estimular a criação de uma "empresa montada numa garagem, para explorar uma idéia maluca utilizando tecnologia" (Bill Hewlett e David Packard abrindo o caminho com a HP no final dos anos 1930). Hoje, muitas são as iniciativas de tentativa de reprodução do ambiente criado no "Vale do Silício", seja no próprio território americano (Seattle, por exemplo), seja na Europa ou na Ásia. Todavia, conforme Ron Conway (Angel Investors LP, escolhido como número 6 na lista "Midas" de maiores "dealmakers" da Forbes Magazine em 2006) e Mike Mapels Jr (Maples Investments) declaram numa palestra intitulada "Silicon Valley: Ground Zero for the Deal", para o Stanford University's Entrepreneurship Corner, ali o ecossistema de idéias, empreendedorismo, e investimento de capital de risco é tão poderoso que nenhuma outra região sequer chega próximo: trace um raio de 40 km em torno da Stanford University e aí estão 75% dos casos de sucesso da indústria do chamado "venture capital".

O fato concreto é que nada menos que Google, Yahoo, Hewlett-Packard, YouTube, Sun, Cisco, eBay, PayPal, Orkut, Electronic Arts, Dolby, e outros ícones da sociedade da informação brotaram no campus de Stanford. Nem mesmo Harvard (aí incluindo o MIT), que em quase todos os sistemas de pontuação acadêmica se põe à frente de Stanford, e com o dobro do endowment (US$ 35 bi contra US$ 17 bi), tem registro minimamente comparável de empreendimentos tecnológicos transformadores já consolidados.

Embora a capacidade empreendedora não tenha sido fator de sucesso acadêmico em Stanford, o espírito de respeito mútuo entre academia e empreendimento que tem prevalecido ali é reflexo do desejo de fazer impacto em escala global. Em março de 2006, por ocasião da cerimônia de celebração dos 40 anos de ciência da computação em Stanford, Bill Dally (chefe do depto. de computação) dizia: "É um equilíbrio delicado, pois você não quer que valores acadêmicos sejam comprometidos por valores corporativos (...). Uma universidade é para criar conhecimento, e uma empresa é para criar valor. Acho que Stanford encontrou um equilíbrio apropriado".

Vencer o impasse entre a desconfiança de cada lado (acadêmicos só pensam no conhecimento, empreendedores só pensam no lucro) deve ser encarado como um desafio a ser constantemente perseguido, sobretudo nos países emergentes. A China parece ter entendido bem a lição. Rebecca Fannin, em "Silicon Dragon: How China is Winning the Tech Race" (McGraw-Hill, 2007), faz um alerta para velocidade com que os chineses caminham para tomar a frente no setor de inovação tecnológica: "a China tem o mercado de capital empreendedor que mais cresce no mundo e também o maior crescimento no número de novos pedidos de registro de patente". E lembra que a nação que nos deu o ábaco, a seda, o papel e a pólvora já está em oitavo lugar no ranking de novas patentes, caminhando rapidamente para assumir o terceiro lugar, atrás apenas dos EUA e do Japão.

Pesquisa científica esperta, desenvolvimento, e aplicação em inovação com base em conhecimento científico, tudo isso tem desempenhado um papel fundamental no sucesso da Google, e por que não aprender e procurar assimilar bem o exemplo?


O Globo Online, 02/09/2008,http://oglobo.globo.com/opiniao/mat/2008/09/02/a_ciencia_como_inspiracao-548050565.asp