A Dimensão Tácita do Conhecimento e Uma Nova Cultura de Aprendizado
Num mundo em constante mudança, e num ritmo cada vez mais acelerado de transformações, os próprios conceitos de saber e aprendizado passam por um momento de redefinição e reformulação. Os sistemas educacionais padronizados se deparam com o grande desafio de ter que se ajustar a uma época em que tudo em torno do conceito de informação, desde fatos, conhecimento, pesquisa, métodos, ferramentas, interpretações, e até contextos, se encontra em expansão e mudança a passos largos. As práticas educacionais baseadas na concepção de que o aprendizado se dá na medida em que o conhecimento é transferido do instrutor para o aprendiz simplesmente não conseguem acompanhar o ritmo das mudanças.
Ainda que em melhor posição, as práticas que incorporam adaptação e ajuste a mudanças também se vêem passadas rapidamente para trás na medida em que o ambiente requer que o conteúdo seja atualizado praticamente na mesma velocidade em que é ensinado. Ao invés de tentar uma resistência quixotesca a todo esse contexto fluido e dinâmico, o desafio é encontrar um conjunto de princípios básicos que dê suporte a uma nova cultura de aprendizado.
Em seu novo livro “A New Culture of Learning: Cultivating the Imagination for a World of Constant Change” (CreateSpace, Jan 2011), Douglas Thomas e John Seely Brown buscam um entendimento de como as forças de mudança e as ondas emergentes de interesse associadas a essas forças podem nos inspirar e nos levar a imaginar um futuro para o aprendizado que seja, ao mesmo tempo, poderoso e repleto de otimismo. A idéia é que uma melhor compreensão dos processos de aprendizado que dão suporte às práticas que emergem da participação em redes digitais pode nos capacitar a conceber ambientes de aprendizagem que possam tirar proveito do poder da cultura de participação inerente às mídias sociais em prol da educação no século XXI.
Trata-se de uma perspectiva mais colaborativa da troca de conhecimento realizada no que os autores chamam de “o coletivo”. Enquanto que o espaço “público” invoca amplitude e anonimidade, o coletivo é formado por pessoas que compartilham valores e se vêem engajadas em práticas compartilhadas. Segundo Thomas & Brown, dois elementos compõem a nova cultura de aprendizado: (i) “uma rede maciça de informações que propicia acesso e recursos praticamente ilimitados para aprender sobre tudo” e (ii) “um ambiente limitado e estruturado que dá espaço para atuação ilimitada no sentido de construir e experimentar com coisas dentro desses limites”.
É fato que a combinação da internet com a telefonia móvel propiciaram tamanho grau de interconectividade e interatividade a ponto de dar surgimento a um novo sentido de tutoria propiciada pelo acesso a múltiplos níveis de expertise.Enquanto que no sentido tradicional tutoria era um meio de passar cultura a membros numa comunidade, tutoria no coletivo está mais relacionada a aprender e desenvolver relacionamentos entre-pares (“peer-to-peer”) temporários que são naturalmente fluidos e impermanentes. E nesse caso, a expertise é compartilhada de forma aberta e espontânea, sem qualquer compromisso com uma missão institucional.
Por outro lado, o estímulo à curiosidade e à experimentação lúdica trazido pelos jogos eletrônicos, vem se somar a um ambiente propício a uma nova cultura de aprendizado. (É justamente nesse sentido que John Seely Brown chama os dispositivos móveis da nova geração – iPods, iPads, smartphones, vídeo games móveis – de “amplificadores da curiosidade”.) Além de fazer surgir na criança habilidades para lidar com condições novas, inesperadas e mutantes, o brincar é mais que uma ferramenta para administrar mudanças, pois permite fazer com que coisas novas se tornem familiares, experimentar com alternativas diferentes, e, fundamentalmente, assumir a mudança como inerente ao mundo atual—uma característica chave para o sucesso no século XXI, segundo os autores.
Fincada na idéia de que o aprendizado consiste na aquisição de habilidades ou na transmissão da informação, a concepção predominante no século XX seria definida como “aprender sobre” (“learning about”). Já no final do século passado começou a se consolidar a concepção denominada de “aprender a ser” (“learning to be”) caracterizada pela inserção do aprendizado num contexto situado que leva em conta, além da transmissão da informação, os aspectos relativos a sistemas e identidade. Dadaa fluidez com a qual as mudanças estão ocorrendo nos dias de hoje, os autores propõem a adoção de uma perspectiva mais apropriada aesses novos tempos: a abordagem “aprender a vir a ser” (“learningtobecome”).A idéia é que, enquanto que as teorias do aprendizado consideram o “vir a ser” como um estado de transição, essa nova abordagem vê o aprendizado como uma prática do vir a ser recorrente, e que pressupõe participação e engajamento.
Se, por um lado, a velha mídia assume que o aprendizado consistia na absorção ou interpretação de uma mensagem transmitida, por outro lado, a nova mídia parte do princípio de que o aprendizado é um processo de engajamento com a informação e seu uso num contexto social mais amplo como um componente fundamental da chamada “inquirição produtiva”, noção originalmente concebida no pragmatismo de John Dewey, que, aliás, se aplica também à velha mídia. A diferença, segundo Thomas & Brown, é que o arcabouço social da nova mídia começa a desvendar um aspecto da inquirição produtiva que nunca havia sido pensado nem sequer estava disponível antes do advento das mídias sociais: a capacidade de engajar a imaginação. Permitindo a fusão da tecnologia de redes, de comunidades de interesse e de um sentido compartilhado de presença mútua, a infraestrutura da nova mídia deu origem ao que os autores chamam de “imaginação em rede”. Dado que o paradigma para o aprendizado na velha mídia é a noção de transferência direta do conhecimento, como se este fosse uma substância, Thomson & Brown estão mais interessados em descobrir como seria uma teoria do aprendizado para as mídias coletivas, sociais e participatórias.
Em artigo intitulado “Learning for a World of Constant Change: Homo Sapiens, Homo Faber & Homo Ludens revisited”, apresentado por John Seely Brown no “7th GlionColloquium” realizado em 2009, Thomas & Brownexaminam o aprendizado no contexto de três pilares: saber, fazer e brincar. Com a intenção de argumentar que não é por transferência de conhecimento que o aprendizado funciona, os autores vão buscar no trabalho de Michael Polyani (“The Tacit Dimension”, 1967) a base para suas convicções de que o conhecimento tem uma dimensão essencialmente social: trata-se da dimensão tácita, que, segundo Polyani, complementa a dimensão explícita do conhecimento.
Ao observar a dimensão social da nova mídia, afirmam Thomas & Brown, é possível começar a ver que contextos sociais nos quais o saber, o fazer e o brincar surgem como elementos centrais do aprendizado e que a estrutura do aprendizado nesses novos contextos estão diretamente relacionados à interação entre esses três elementos. E, concluem, esses três domínios do aprendizado também correspondem a três componentes mais amplos: Homo Sapiens (humano como aquele que sabe), Homo Faber (humanocomo aquele que faz) e Homo Ludens (humano como aquele que brinca/joga).
Por fim, como recomendação para que floresça uma nova cultura de aprendizado, será preciso: (1) pensar sobre o problema como uma crise no aprendizado ao invés de no ensino; (2) prestar atenção ao poder das novas culturas do aprendizado que já estão acontecendo e entender o que as torna bem sucedidas; (3) lançar mão de novos recursos: aprendizado entre-pares, amplificado pelo poder do coletivo; (4) entender como otimizar os recursos (e a liberdade) de grandes redes, e ao mesmo tempo proporcionar atuação pessoal e individual dentro dos limites de um espaço de problemas criado por um ambiente de aprendizado limitado.
Ruy José Guerra Barretto de Queiroz, Professor Associado, Centro de Informática da UFPE