segunda-feira, 9 de novembro de 2009

A Contracultura Matemática e o Espírito Libertário

A Contracultura Matemática e o Espírito Libertário

SEG, 09 DE NOVEMBRO DE 2009 08:14 IN

9 de novembro de 2009 - Diz-se excêntrico, segundo o Houaiss, do “indivíduo que age ou pensa de maneira original, extravagante, fora dos padrões considerados normais ou comuns.

O que dizer de um matemático que, após (1) resolver um dos problemas mais difíceis do milênio de forma reconhecidamente engenhosa e criativa, (2) publicar seus resultados em página da internet sem o devido “peso” de reconhecimento formal como é o caso de revistas científicas tradicionais, e (3) recusar os prêmios a que teria direito (uma Medalha Fields, o mais prestigioso prêmio a que um matemático pode aspirar, e uma premiação em dinheiro no valor de um milhão de dólares concedida por uma espécie de fundação sem fins lucrativos para o desenvolvimento da matemática), recusa ofertas de emprego como professor em algumas das melhores universidades do mundo (Princeton, Stanford)? Além de toda essa renúncia, esse indivíduo de capacidade intelectual privilegiada ainda declara que todas essas ofertas não passam de graves insultos, pois acredita que a monetização da realização é o pior dos insultos à matemática. Mais ainda, decide deixar a matemática, e, segundo se conta, continua vivendo com sua mãe na periferia de São Petersburgo. A bem da verdade, esse mesmo sujeito excêntrico já em 1996 havia se recusado a receber um prêmio para jovens matemáticos a ele concedido pela Sociedade Européia de Matemática.

Trata-se de Grigori Perelman, matemático russo nascido em 1966 na então Leningrado (hoje São Petersburgo), que resolveu a “conjectura de Poincaré”, um enunciado matemático declarado num artigo de 1904 pelo gênio francês Henri Poincaré (1854-1912) sobre a caracterização da espaço esférico tridimensional entre as superfícies tridimensionais. Em poucas palavras, a conjectura (hoje considerada teorema devido a Perelman) dizia que se qualquer laço num certo tipo de espaço tridimensional puder ser encolhido a um ponto sem desatar o laço nem rasgar o espaço, então o espaço é equivalente a uma esfera. No final das contas, o que Poincaré sugeriu foi que qualquer coisa que não tenha buracos tem que ser uma esfera. Essa “qualquer coisa” tinha que ser o que os matemáticos chamam de compacto, ou fechado, o que significa que tem uma extensão finita: não importa o quanto você espicha numa direção ou na outra, você só consegue chegar a uma certa distância até que comece a voltar. No caso de duas dimensões, como a superfície de uma esfera ou de uma rosquinha, imagine um elástico em volta de uma maçã e outro em torno de uma rosquinha. Na maçã, o elástico pode ser encolhido sem limite, enquanto que na rosquinha ele acaba impedido pelo buraco no meio. Com três dimensões, é mais difícil discernir o formato geral de um objeto, pois não conseguimos ver onde estão os buracos. Não é à toa que os astrônomos ainda discutem sobre o formato do universo: se é uma esfera, uma rosquinha , ou algo mais complicado.

Em Novembro de 2002, Perelman depositou num repositório de arquivos científicos na internet chamado “arXiv” o primeiro de uma série de três artigos nos quais reivindicava ter obtido uma demonstração da chamada conjectura da geometrização, um resultado que inclui a conjectura de Poincaré como um caso particular. Tendo depositado o último dos artigos em Julho de 2003, e essencialmente sumido do mapa, Perelman acabou tendo seu argumento oficialmente confirmado como correto pela comunidade científica em Agosto de 2006 por ocasião do Congresso Internacional de Matemáticos realizado em Madrid.

Em matéria publicada em 06/11/09 no Wall Street Journal intitulada “Russia’s Conquering Zeros”, Masha Gessen diz que “pode não ter sido mero acidente que, enquanto algumas das mentes americanas mais privilegiadas trabalhavam para resolver um dos problemas mais difíceis do século, foi um matemático russo trabalhando na Rússia que, no início dessa década, finalmente triunfou.” Trata-se essencialmente de uma apresentação de seu mais recente livro sobre a saga de Perelman, “Perfect Rigor: A Genius and the Mathematical Breakthrough of the Century” (Houghton Mifflin Harcourt, Novembro 2009) no qual Gessen, embora sem ter tido a chance de encontrá-lo pessoalmente, conta a estória desse gênio excêntrico russo sob o ponto de vista de uma ex-aluna no sistema educacional do qual ele foi um produto. No regime soviético, os matemáticos trabalhavam isolados de seus pares do mundo ocidental, mas eram incentivados e treinados para servir ao Estado, como, por exemplo, eram recrutados por um sistema concebido para preparar estudantes para participar de competições matemáticas internacionais. O talento de Perelman foi reconhecido logo cedo, e os resultados apareceram sob forma de uma medalha de ouro na Olimpíada Internacional de Matemática em 1982. (Diga-se de passagem, um dos legados disso tudo impressiona: na série de competições internacionais de programação de computador organizada pela Association for Computing Machinery (ACM) e apoiada pela IBM desde os anos 1970’s – International Collegiate Programming Contest – em todos os anos pelo menos uma instituição de São Petersburgo está entre os 3 primeiros lugares desde 1998 quando a Europa Oriental passou a participar com freqüência.)

Por não fazer parte dos mais chegados aos círculos do poder, além de sofrer discriminação devido ao anti-semitismo soviético, Perelman cresceu em meio ao que Gessen chama de “contracultura matemática”: “na contracultura matemática, matemática era quase um hobby,” conforme lembra Sergei Gelfand. “Portanto você poderia passar todo o seu tempo fazendo coisas que não seriam úteis a ninguém daqui até a década mais próxima.” Os matemáticos chamavam de “matemática pela matemática.” Não havia qualquer recompensa material – nenhuma posição acadêmica, nada de dinheiro, nenhum apartamento, nenhuma viagem – e tudo que se esperava ganhar era o respeito de seus pares. “A matemática, não apenas garantia a promessa de trabalho intelectual sem a interferência do estado mas também de algo que não existia em mais nenhum recanto da sociedade soviética: uma verdade única passível de ser conhecida.” “Perelman é filho dessa contracultura matemática soviética, e ainda acredita numa única verdade como auto-evidente: a matemática como ela deve ser praticada, a matemática como o derradeiro vôo da imaginação, é algo que o dinheiro não pode comprar, ” conclui Gessen.
Com ou sem contracultura, Perelman é o que podemos chamar de exemplo não apenas de puro talento matemático, mas de integridade e de espírito libertário: o direito de agir ou pensar de maneira original, extravagante, fora dos padrões considerados normais ou comuns, e ainda assim contribuir de modo decisivo para o bem comum.

Ruy José Guerra Barretto de Queiroz, Professor Associado, Centro de Informática da UFPE

ÚLTIMA ATUALIZAÇÃO ( SEG, 09 DE NOVEMBRO DE 2009 08:16 ) Investimentos e Notícias (São Paulo), 09/11/2009, 08:14hs, http://www.investimentosenoticias.com.br/ultimas-noticias/artigos-especiais/a-contracultura-matematica-e-o-espirito-libertario.html

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Humanos como Sensores

Humanos como Sensores

TER, 03 DE NOVEMBRO DE 2009 07:53 IN
3 de novembro de 2009 - Com a disponibilidade do iPhone, assim como de uma gama de aparelhos celulares de última geração conhecidos como smartphones, que, via de regra, dispõem de sensores tais como camera (foto e vídeo), acelerômetro, sensor de posicionamento global (GPS), sensor de proximidade, e magnetômetro (bússola digital), além do fácil acesso à internet, cada ser humano passa a ter a capacidade concreta de agir como um sensor inteligente, e suas observações podem ser cruciais numa situação de desastre natural.
Eventos de grande impacto tais como o tsunami que devastou partes do sudeste da Ásia, e o Furacão Katrina que tantos estragos trouxe a Nova Orleans, chamaram à atenção para a importância da informação geográfica em todos os aspectos do gerenciamento da emergência, assim como para os problemas que surgem logo após o evento ainda nos momentos em que as imagens ainda não estão disponíveis aos organismos de socorro e assistência. Não apenas os satélites de observação da Terra podem não passar pelas áreas afetadas durante dias, como também as próprias imagens eventualmente coletadas assim como as ações de aeronaves deslocadas para a região podem estar prejudicadas por nuvens e possivelmente fumaça. As condições em terra também podem estar dificultando a captura e o registro de imagens, seja por falta de energia, conexões de internet, ou pane em computadores ou software.
Por outro lado, a população da área atingida, além da inteligência humana, tem o privilégio da familiaridade com a região, e hoje tem à sua disposição uma combinação extremamente poderosa: a telefonia móvel e a internet interativa. Trata-se de uma realidade que se consolida a cada dia: o amplo e crescente engajamento de grandes quantidades de cidadãos comuns, frequentemente com pouca qualificação formal, na criação de informações geográficas, uma função que durante séculos tem sido reservada a agências oficiais. Em sua grande maioria, são cidadãos sem o devido treinamento científico (por isso sua participação nessa coleta de informações tem sido chamada de “ciência do cidadão”), cujas ações são quase sempre voluntárias, e cujos resultados podem ou não ser cientificamente precisos. Mas, coletivamente representam uma espetacular inovação que deverá ter profundos impactos sobre sistemas de informação geográfica. Trata-se da “informação geográfica voluntarizada” (em inglês, “volunteered geographic information”), termo inventado pelo geógrafo Michael Goodchild em seu artigo “Citizens as Sensors: The World of Volunteered Geography” (“Cidadãos como Sensores: O Mundo da Geografia Voluntarizada”), publicado em 2007 no International Journal of Spatial Data Infrastructures Research, para se referir a um caso especial do fenômeno de internet mais geral concernente a conteúdo gerado pelo usuário.
A Wikipedia é um exemplo amplamente conhecido e extremamente bem sucedido desse processo também denominado “crowdsourcing”, termo cunhado por Jeff Howe num artigo publicado no número de Junho de 2006 da revista Wired para se referir ao ato de tomar tarefas tradicionalmente executadas por um empregado ou um contratado, e terceirizá-las a um grupo de pessoas ou comunidade – em inglês, “crowd” – na forma de uma chamada aberta. Nesse processo, indivíduos são capazes, por exemplo, de fornecer os verbetes de uma vasta enciclopédia que é gerenciada por um grupo comparativamente pequeno de revisores e administradores. Tais serviços tipicamente permitem o registro e a manutenção do que se chama tecnicamente de “metadados” de forma razoavelmente estruturada. No caso da Wikipedia, por exemplo, os usuários são capazes de acessar a história completa de qualquer verbete, inclusive todas as versões anteriores e as respectivas modificações. A mudança em relação ao processo tradicional de produção de uma enciclopédia é marcante: ao invés de uma estrutura administrativa elaborada que recruta um certo número de autores, espera por suas contribuições, edita, harmoniza, e imprime o resultado, um processo que pode durar anos, a Wikipedia é montada continuamente, e seus verbetes aparecem praticamente de forma instantânea. Erros normalmente são identificados e retificados pelos próprios usuários. Mesmo não tendo a autoridade conferida por uma editora reconhecida, a Wikipedia já serviu de base para mais de muitas sentenças judiciais emitidas nos EUA: um artigo de 2007 do New York Times (“Courts Turn to Wikipedia, but Selectively”, por Noam Cohen, 29/01/07) dizia que “mais de 100 sentenças judiciais se basearam na Wikipedia, começando em 2004, incluindo 13 dos tribunais de apelação, um degrau antes da Suprema Corte”.
Com o advento do Twitter, surge o crowdsourcing de tempo real, que aliás ganhou ainda mais utilidade quando a ênfase em sua página inicial passou de “O que você está fazendo agora?” para “Veja o que as pessoas estão falando sobre...” . Trata-se de um convite a uma busca a ser realizada sobre os comentários que circulam “agora” na rede social. Pois bem, o U.S. Geological Survey (“Serviço de Pesquisa Geológica dos EUA”) reconhece o valor da informação de crowdsourcing proveniente do Twitter, e desenvolve um sistema que utiliza resultados de busca do serviço de microblog para recuperar e mapear informações sobre terremotos em tempo real. O “USGS: Twitter Earthquake Detector” pretende coletar mensagens relacionadas a terremotos e mapeá-las de modo a propiciar a detecção de terremoto dentro de 60 segundos do ocorrido, um grande avanço em relação aos 2 a 20 minutos necessários aos sistemas científicos atuais de alerta. Usando o Twitter para esse propósito permite não apenas o conhecimento relativamente instantâneo do terremoto, mas também a disponibilidade em primeira mão do grau de destrutibilidade através de fotos e imagens do local do evento fornecidas por “humanos como sensores”.
Durante a Conferência “Web 2.0 Summit 2009”, realizada de 20 a 22/10/09 em San Francisco, Brady Forrest do grupo O'Reilly Media organizou um painel intitulado “Humans As Sensors”, para o qual convidou representantes de quatro organizações que trabalham com aplicativos inovadores utilizando sensores: Markus Tripp (Mobilizy), Deborah Estrin (Departamento de Ciência da Computação, UCLA), Sharon Biggar (Path Intelligence), e Di-Ann Eisnor (Waze).
O Waze é um aplicativo de crowdsourcing de tempo-real e de mapeamento ao vivo. Funciona nos principais modelos de smartphone, e seu serviço é denominado por seus criadores de “cartografia transacional”, pois propicia navegação passo a passo no trânsito baseada em informações de crowdsourcing de tempo real coletadas das mais diversas fontes: Twitter, banco de dados sobre informações típicas daquela localização (velocidade média de tráfego, por exemplo).
A Path Intelligence traz inovação ao mundo das vendas a varejo, em particular os chamados shopping centers, através de um aplicativo chamado “FootPath”: o sistema consiste de um pequeno número de unidades de monitoração instaladas num shopping Center que calculam o movimento de consumidores sem que haja a necessidade de que os consumidores estejam portando algum equipamento, pois as pquenas “torres” medem os sinais que vêm dos seus aparelhos celulares usando uma tecnologia que pode localizar a posição de um determinado consumidor com uma margem de 1 a 2 metros. As unidades alimentam esses dados (24 horas por dia, 7 dias por semana) a um centro de processamento no qual os dados são auditados e uma análise estatística sofisticada é aplicada para criar informações continuamente atualizadas sobre o fluxo de consumidores dentro do shopping center. E a qualquer momento a gerência do shopping center pode acessar esses dados através da internet, e tomar providências baseadas em informações de tempo real. Sharon Biggar, representante da Path Intelligence, sugere uma analogia com o Google Analytics, pois trata-se de coletar dados de sensores, e analisá-los, tudo isso disparado por sinais dos próprios aparelhos celulares, sem a necessidade de instalação de software ou equipamento especial.
Exemplo de verdadeiro engajamento de humanos como sensores, o projeto de “sensoriamento participativo” liderado pela Professora Deborah Estrin da Universidade da Califórnia em Los Angeles, impressiona pelo seu potencial cívico: numa das aplicações de sensoriamento participativo, visitantes de determinados parques nacionais americanos podem contribuir diretamente no controle de ervas daninhas invasivas cujas espécies já se sabe que atacam determinadas regiões, informando a um portal específico (“whatisinvasive.com”), através de imagens e localizações exatas, a ocorrência de tais plantas nocivas ao ecossistema do parque sendo visitado. No mesmo sentido, cidadãos podem informar ao portal quais ervas invasivas ainda não cadastradas estão prejudicando a flora e/ou fauna em sua região, de modo a tentar clamar por ajuda. Ao mesmo tempo que oferece ao indivíduo a chance de contribuir explicitamente com dados para o bem comum, o sensoriamento participativo pode ser usado para o benefício imediato do indivíduo, no que Estrin classifica como captura implícita de dados: o projeto “bikestatic.com” mantém um banco de dados sobre rotas de ciclistas urbanos que são coletados com base nos dados capturados pelos sensores de localização e locomoção dos celulares de ciclistas participantes, e essa informação serve ao indivíduo na medida que o informa sobre duração da jornada, nível de poluição sonora e ambiental nos trechos do percurso, e até mesmo o grau de violência urbana que o ciclista pode encarar conforme o trecho.
E a mensagem do projeto de sensoriamento participativo é cativante: “se você não pode ir a campo com o sensor que você deseja, vá com o sensor que você tem”.

(Ruy José Guerra Barretto de Queiroz, Professor Associado, Centro de Informática da UFPE)
ÚLTIMA ATUALIZAÇÃO ( TER, 03 DE NOVEMBRO DE 2009 07:56 )