segunda-feira, 12 de julho de 2010

Assistentes Pessoais Virtuais e o Infomediário


Assistentes Pessoais Virtuais e o Infomediário

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E se imaginássemos a internet como um oráculo com o qual nossa interação fosse verbal e interativa tal qual com outro ser humano? É inegável que à medida que os sistemas computacionais crescem em complexidade e em acesso a mais e mais recursos, tanto locais quanto distribuídos, aumenta a oferta de serviços para os quais o modelo tradicional de interação “clique-e-execute” não mais se apresenta como o mais adequado. A tendência é que aplicativos complexos se comportem como assistentes pessoais aos quais não apenas consultas são submetidas, mas também tarefas são delegadas. Por exemplo, quando se deseja buscar na internet por um restaurante, ao invés de navegar por diversos sítios retornados por um engenho de busca, um comando de voz no estilo “reserve uma mesa para dois às 22hs no restaurante japonês mais próximo” poderia ser submetido ao assistente pessoal. A resposta viria com o nome e o endereço do estabelecimento juntamente com a confirmação da reserva, ou sob forma de uma pergunta do tipo “dado que o mais próximo está indisponível, serve esse outro aqui?”. A bem da verdade, uma ampla classe de problemas demandam as aptidões de um assistente inteligente, um software que pode se comunicar com humanos, entender a situação mapeando os dados à sua disposição num modelo, agir para produzir comportamento útil, e interagir através da produção apropriada de conteúdo comunicante.
Descrito em 1987 pelo então CEO da Apple, John Sculley, em seu livro “Odissey” (em co-autoria com John A. Byrne, e publicado pela Harpercollins), o “Knowledge Navigator” é um conceito de dispositivo futurista que pode acessar um enorme repositório de dados sob forma de hipertexto em rede, e usa agentes de software para assistir na busca por informações bem como na realização de tarefas. À época a Apple produziu alguns videoclips demonstrando a idéia, todos eles exibindo um computador no estilo “tablet” e com diversas aptidões avançadas incluindo excelente compreensão e síntese da fala, além de uma interface por multi-toque.
Trata-se do precursor do conceito de assistente virtual que começam a aparecer como uma realidade dos dias de hoje.
Os chamados “Assistentes Pessoais Virtuais” (em inglês, “Virtual Personal Assistants”, abrev. VPA) representam o paradigma de interação da próxima geração para a internet. No paradigma atual, seguimos os apontadores produzidos pelos engenhos de busca. Com um VPA, no entanto, interagimos sob forma de uma conversação. Emitimos uma solicitação verbal ao assistente, e este se encarrega de empregar os serviços necessários para a realização da tarefa. Além do mais, tal qual um verdadeiro assistente, um VPA é pessoal, e portanto utiliza as informações sobre as preferências, a localização e a história de interação do usuário para levar a bom termo a solicitação recebida, acumulando conhecimento ao longo do processo.
Lançado no início de 2010 e recentemente adquirido pela Apple, o Siri, que produz o aplicativo de mesmo nome para o iPhone, é o que se pode chamar de “engenho do fazer”, ao invés de “engenho de busca”. Ao processar sua solicitação verbal disparando requisições aos melhores serviços disponíveis na internet por meio de API’s (“Application Programming Interface”), de modo a cumprir o papel de assistente da melhor forma possível, o VPA se vale de um núcleo de tecnologia de inteligência artificial que tem tudo para produzir um enorme impacto no futuro da internet. Constituído de três componentes essenciais para o bom desempenho de assistente pessoal virtual (uma interface conversacional, um módulo de consciência do contexto pessoal, e um agente de delegação de serviços), o Siri permite a conversação bidirecional através da fala, de palavras e frases digitadas, e de uma interface gráfica. Verdadeiramente impressionante é seu conjunto (patenteado) de algoritmos de delegação de serviços: combina diversos atributos sobre cada provedor de serviços, incluindo escores de qualidade, classificações refinadas para aptidões específicas, medidas de velocidade, bem como limitações geográficas, com vistas a planejar e executar uma estratégia ótima para lidar com a solicitação do usuário.
Concebido como um subproduto do projeto CALO (“Cognitive Assistant that Learns and Organizes”) realizado pelo SRI International, com financiamento da Agência DARPA do Ministério da Defesa dos EUA, e considerado como o maior esforço de pesquisa em Inteligência artificial da história do país, o Siri tem sido citado como uma das indicações dos rumos da busca na internet: o desafio de criar um assistente digital eficaz e verdadeiramente útil na medida em que é capaz de entender exatamente o que o usuário deseja, e exigindo o mínimo de esforço de comunicação da parte do usuário.
É fato que há uma relação direta entre simplicidade e o engajamento do usuário na internet. Menos cliques significa mais usuários. Quando combinados com ferramentas cada vez mais acessíveis como smartphones, os chamados “assistentes virtuais” deverão levar a interação com o usuário em direção a um comércio eletrônico, um consumo, e um modelo de colaboração com bem mais fluidez. Mais cedo do que imaginamos, vamos poder pegar o telefone e começar a pedir ao assistente virtual coisas como “me leve ao portal da Globo.com”, “mande um exemplar do último livro de Stephenie Meyer para minha sobrinha”, “avise a Paulo que vou chegar 20 minutos atrasado”, e assistiremos a isso tudo acontecer. O fato é que à medida que a interação fica mais fácil e natural, diminuem as barreiras para a utilização do aparelho celular para realizar tarefas complexas. Além do mais, a conectividade e a velocidade de transmissão de dados das redes de telefonia móvel deverão possibilitar ao aparelho celular repassar as tarefas que requerem maior inteligência e maior poder computacional a servidores remotamente localizados, sem prejudicar a viabilidade da resposta ao usuário em tempo hábil.
Levando-se em consideração que o aparelho celular tende a estar sempre em nosso poder, a combinação de simplicidade, oportunidade de impulso, contexto, e preferência deverá dar origem à mais explosiva oportunidade de mercado em décadas. E nesse mercado praticamente todos se beneficiarão: se por um lado os usuários clicam menos pois a comunicação oral prevalece, levando a uma interação de melhor qualidade, por outro lado, os provedores de serviços são mais solicitados e processam mais transações.
Por outro lado, ao cidadão resta saber se vale a pena deixar que o assistente pessoal virtual saiba tanto sobre si a ponto de atingir o máximo de eficácia com o mínimo de esforço de comunicação. Afinal de contas, permitir um grau de intimidade com qualquer assistente, ainda que digital, deverá demandar do cidadão a entrega de uma tremenda quantidade de informações pessoais, o que traz à tona a questão da confiança. A quem deveríamos confiar informações sensíveis sobre nós mesmos?
Em seu livro “Net Worth” (Harvard Business Press, 1999) John Hagel III e Marc Singer introduzem o conceito de “infomediário”, alguém a quem você confia informações privadas sobre você, e que agiria tanto como uma espécie de porteiro quanto como um tipo de filtro nas suas futuras escolhas de consumo. Tal qual já o fizeram Hagel e Singer em 1999, vale a pena especular sobre que tipo de organização pode emergir como o infomediário. Talvez, dada a promessa de facilitar a vida do cidadão contemporâneo, os aplicativos baseados nas nuvens que dão suporte aos assistentes pessoais virtuais, serão os mais fortes candidatos a assumir esse papel.
 
Ruy José Guerra Barretto de Queiroz, Professor Associado, Centro de Informática da UFPE

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Tecnologia, Escolha e o Sétimo Reino


Tecnologia, Escolha e o Sétimo Reino

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Qualquer reflexão sobre o papel fundamental que a tecnologia exerce na vida contemporânea parece deixar um certo sentimento de ambivalência. Ao mesmo tempo que têm contribuído para salvar vidas, promover o bem-estar do ser humano, assim como oferecer mais liberdade de escolha, os avanços tecnológicos muitas vezes são alcançados a um custo ambiental nem sempre desprezível. Em artigo no portal Edge.org (da Edge Foundation, Inc.) intitulado “The Technium and the 7th Kingdom of Life”, publicado em 19/07/2007, Kevin Kelly, possivelmente um dos mais importantes pensadores contemporâneos dedicados a questões fundamentais sobre a natureza e a evolução da tecnologia, se propõe não apenas a analisar o significado da tecnologia em nossas vidas, mas sobretudo a investigar onde estaria situada a tecnologia no universo e na condição humana. Lembrando que a tecnologia, como um sistema em si próprio ao qual ele atribui a denominação de “technium”, parece ser uma força dominante na cultura de hoje e de tempos passados, Kelly se pergunta o que podemos esperar dessa força, e, em última análise, o que a governa. Vislumbrando objetivos tão ambiciosos quanto visionários, declara que sua intenção é buscar um melhor entendimento das conseqüências de longo prazo da tecnologia no mundo, colocando-a no mesmo patamar que a natureza biológica, a história do universo, a física do cosmo, e o próprio futuro.
É bem verdade que no senso comum há um sentimento de que cada nova tecnologia nos traz novos problemas assim como novas soluções. Deveríamos então buscar por uma conceituação dessa coisa chamada tecnologia de modo que pudéssemos atingir um grau mínimo de comprensão a ponto de sermos capazes de avaliar se essa aparentemente incessante geração de novidades seria algo a que deveríamos, ou sequer poderíamos, responder. Uma das respostas de puro reflexo aos problemas causados pela tecnologia seria a proibição. Desde a energia nuclear até os alimentos geneticamente modificados, para mitigar os efeitos detrimentais restringimos seu uso a certas fronteiras cuidadosamente delimitadas. Nesse mesmo espírito estaria o princípio de que há certas idéias que não deveríamos sequer cogitar, rumos de pesquisa que deveríamos proibir a priori, bem como tecnologias que nunca deveriam ser experimentadas fora do laboratório, talvez sequer dentro do laboratório. Uma teoria contrária, no entanto, defende que as proibições não funcionam e que não há como administrar a tecnologia simplesmente proibindo seu uso. Ao contrário, é preciso saber deslocar, substituir, adaptar, sintonizar, enfim, transferir uma tecnologia para um outro papel sem ter que eliminá-la.
Ainda com toda essa conceituação à nossa disposição, a bem da verdade não chegamos a um bom entendimento do que de fato é tecnologia, nem mesmo como defini-la. Segundo Alan Kay, “tecnologia é qualquer coisa inventada depois que você nasceu”. Para Danny Hillis, no entanto, “tecnologia é qualquer coisa que ainda não funciona propriamente”, numa referência ao que é novo e ainda não se tornou transparente. Conforme lembra Kelly, tecnologia no sentido moderno é um termo que não havia sido sequer inventado até que em 1829 o médico e botanista Jacob Bigelow publicou umas notas de aulas proferidas em Harvard sobre a “aplicação das ciências às artes úteis” sob o título “Elements of Technology”.  Não obstante, a humanidade já vinha fazendo tecnologia há séculos, mas ainda não tinha uma palavra para denominá-la. (Curiosamente, a primeira menção da palavra “tecnologia” em um pronunciamento de um presidente americano à sua população – o chamado “State of the Union Address” – somente ocorreu em 1952.)
Fundador e/ou editor de alguns dos mais importantes veículos sobre tecnologia (Whole Earth Review, Whole Earth Catalog, Wired), além de ter sido co-fundador da WELL, uma das primeiras e mais marcantes comunidades virtuais de que se tem notícia, Kelly é mais conhecido como o autor de “Out of Control: The New Biology of Machines, Social Systems, and the Economic World” (1994), no qual apresenta uma perspectiva sobre os mecanismos de organização complexa. Tendo sido leitura obrigatória para os principais atores da série de filmes “Matrix”, o livro gira em torno de temas como cibernética, emergência, auto-organização, sistemas complexos, e teoria do caos, e trata essencialmente de um suposto ponto de convergência de diversas áreas da ciência e da filosofia contemporâneas: a inteligência não é organizada sob forma de uma estrutura centralizada mas, é muito mais parecida com uma espécie de colméia de pequenos componentes.
Em livro a ser publicado em Outubro de 2010 com o título “What Technology Wants” (Viking Adult), assim como em palestra de mesmo título proferida ao portal TED.com em 2005 e outra também ao TED em Novembro de 2009, Kelly se refere à tecnologia como uma entidade “biológica”, a saber, o technium, com sua própria agenda e sua própria trajetória de longo prazo. Entre as características fundamentais do technium estariam: aumentar a diversidade, maximizar a liberdade e as escolhas, expandir o espaço do possível, incrementar a especialização, aumentar a densidade do poder e do significado, engajar matéria e energia, atingir ubiqüidade e liberação, aumentar a complexidade e a co-dependência social assim como a natureza auto-referencial, alinhar-se com a natureza, bem como acelerar a evolutibilidade. De modo geral, a tendência da tecnologia seria aumentar a diversidade de artefatos, métodos, e técnicas, levando a uma maior multiplicidade de possibilidades e de escolhas.
Ainda como parte de sua concepção da tecnologia como uma entidade biológica, Kelly sugere tratar tecnologias específicas como se fossem indivíduos ou espécies que fariam parte do sistema emergente denominado technium. Nesse sentido, um organismo tecnológico individual teria um tipo de resposta, mas numa ecologia composta de espécies que co-evoluem iríamos encontrar uma entidade elevada – o technium – que se comportaria de forma bem diferente de uma espécie individual. O technium seria um certo superorganismo de tecnologia que teria sua própria força, que por sua vez seria em parte cultural (influenciada por e influenciadora dos humanos), mas que também seria parcialmente não-humana, parcialmente não-indígena à física da própria tecnologia. E esse superorganismo seria como se fosse um filho da humanidade, que nós humanos teríamos que treinar imbuindo-o de certos princípios e valores que apreciamos antes que se tornasse mais autônomo do que seria hoje.
Enfim, argumenta Kelly, a tecnologia teria sua própria história natural, e não seria uma entidade meramente derivada do humano, pois suas raízes remontariam ao Big Bang.  O technium teria muitas características em comum com a vida biológica, a mente, e outros “sistemas extrópicos auto-sustentáveis próximos-ao-equilíbrio”. (A extropia seria definida como “o grau de inteligência, ordem funcional, vitalidade, energia, capacidade e impulso de um sistema vivo ou organizacional para o melhoramento e o crescimento.”) A tecnologia, portanto, poderia ser entendida numa escala cósmica como algo que teria se desenvolvido a partir do Big Bang.
Numa certo sentido, propõe Kelly, poder-se-ia pensar no technium como o sétimo reino da vida. Em outras palavras, além dos seis reinos (Archaebacteria, Eubacteria, Protista, Fungi, Plantae, e Animalia) definidos segundo a classificação de alguns biólogos tais como Lynn Margulis, o technium, enquanto sistema extrópico que se originou de animais, seria considerado o sétimo.
Ruy José Guerra Barretto de Queiroz, Professor Associado, Centro de Informática da UFPE