quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

O Instinto de Defesa, Cientistas Malucos e o Corpo Elétrico

O Instinto de Defesa, Cientistas Malucos e o Corpo Elétrico

E-mailImprimirPDF

30 de dezembro de 2009 - Em boa medida fruto do instinto de defesa, uma revolução se desenrola silenciosamente no terreno da relação entre o homem e a máquina. Começa com o ato de dirigir um carro e vai até o comando de um membro artificial que pode ser feito à distância através de sensores injetáveis no corpo humano, como tem ocorrido com veteranos de guerra do exército americano. Fundamental em toda essa revolução, está a DARPA—agência de projetos de pequisa avançada de defesa dos EUA—grupo tão audacioso quanto controverso cujo trabalho futurista tem tido aplicações civis e militares espetaculares, desde a Internet até o GPS, passando por carros sem motorista. Não menos integrante de tal revolução incremental são as chamadas cirurgias minimamente invasivas, prática já incorporada por mais de 850 hospitais nos EUA: manipulando indiretamente minúsculos instrumentos (introduzidos em micro incisões) através de controles no estilo utilizado em videogames e visores binoculares 3D, o cirurgião conta com a precisão das imagens e com a resposta sensorial oferecidas pela máquina interveniente. Ali se busca o engajamento total dos sentidos do cirurgião com os sensores artificiais, como se as mãos e os olhos mecânicos fossem do próprio médico.

Tudo isso se passa com o cirurgião presente na sala. Imagine agora que uma realimentação sensorial possa ir além da sala de cirurgia, transmitida por rede sem fio. Ao digitalizar os comandos cirúrgicos, criam-se momentos de transição nos quais, ao invés de executadas, as manobras são descritas. Em resenha do livro de Michael Belfiore sobre a DARPA (“The Department of Mad Scientists”, Smithsonian Books, Outubro 2009) intitulada “The Body Electric” (New York Times, 24/12/09), William Saletan sugere que essa transição seja estendida realizando-se a cirurgia em realidade virtual permitindo assim que eventuais erros possam ser corrigidos. (É como se passássemos da máquina de datilografia ao processador de texto.) Ao mesmo tempo lembra que no campo de batalha não se pode contar com tais luxos: muitas vezes soldados são feridos em localidades remotas que não dispõem de médico nem rede sem fio, e mesmo assim têm que ser socorridos com urgência. É aí que entra um projeto da DARPA que tem por objetivo desenvolver máquinas móveis que possam fazer a cirurgia sem o comando humano.

Se um robô pode fazer uma cirurgia em você, que tal um robô que se junte a seu corpo? Segundo Saletan, o acasalamento está de fato a caminho. À medida que os soldados voltam do Iraq e do Afeganistão com membros amputados, eles ganham substitutos computadorizados que lêem os sinais elétricos do corpo. Tornam-se ciborgues. “E o passo seguinte é a adaptação mútua. Amputados têm sempre tido que aprender como operar seus novos membros. Agora os membros estão devolvendo o favor”. Saletan explica que o software dos membros artificiais analisa os sinais elétricos do corpo de modo a se tornar gradualmente mais preciso na interpretação de comandos. E, ainda que o cérebro continue no comando, o corpo se torna negociável. Nesse sentido, os amputados têm se submetido a cirurgias para tornar seus sinais motores mais legíveis por membros mioelétricos. “O humano está sendo reconfigurado para a máquina”, conclui Saletan. Mas, enquanto equipamento com software, um membro artificial tanto pode conter vulnerabilidades, quanto pode ser adulterado por um hacker.

Eis um caso emblemático: Michael Weisskopf, um jornalista que perdeu sua mão direita no Iraq, quando tentava fazer seu carro dobrar numa rua em hora de rush, viu sua nova mão agarrar o volante e se recusar a largar. Segundo conta Belfiore, tudo não passou de um malentendido. Mas membros eletrônicos estão sendo programados para tomar cada vez mais decisões.

Tendo surgido em resposta ao lançamento da Sputnik em 1957 (que causou grande preocupação ao governo dos EUA no sentido de que o país estaria sendo ultrapassado pelos soviéticos nos avanços tecnológicos), a DARPA concebeu em 1969 a rede de computadores Arpanet que deu origem ao que hoje conhecemos como Internet, além do controvertido projeto de 2002 chamado “Total Information Awareness” (“Consciência de Informação Total”) cujo objetivo era varrer dados de telecomunicações à procura de sinais de terrorismo.

(Diga-se de passagem que o próprio ecossistema do Vale do Silício, hoje eixo principal da inovação tecnológica, teve sua origem no instinto de defesa: em palestra na série Google Tech Talk intitulada “The Secret History of Silicon Valley” realizada em Dezembro de 2007 na sede da Google, Steve Blank, professor de empreendedorismo em Stanford e Berkeley, revela como as raízes do Vale do Silício nasceram não da indústria dos semicondutores de silício, mas sim do duelo tecnológico sobre os céus da Alemanha e dos esforços secretos em torno da União Soviética. Já em 1939, os alemães tinham desenvolvido sistemas de detecção por radar e se tornaram capazes de identificar os aviões dos aliados bem antes das forças aliadas terem descoberto um antídoto. Por essa razão os militares americanos decidiram fundar um laboratório secreto em Harvard, chamado Radio Research LAB (RRL), e lá desenvolveram a tecnologia de anti-radar. Foi aí que entrou em cena o chamado “arquiteto do Vale do Silício”: Frederick Terman, professor de Engenharia Elétrica de Stanford, especialista em tecnologias de radar, foi convocado para participar do RRL em Harvard, e, ao retornar a Stanford na condição de reitor-executivo, ajudou a construir o ecossistema de pesquisa científica, inovação tecnológica e empreendedorismo ao trazer vultosos investimentos do Departamento de Defesa, da CIA e da Agência Nacional de Segurança, que à época fizeram o papel dos capitalistas de risco financiando as primeiras ondas de empreendedorismo.)

Com o subtítulo de “Como a DARPA está refazendo nosso mundo, desde a internet até membros artificiais”, o livro de Belfiore traz um exemplo concreto de como governos podem estimular a inovação sem criar burocracia inoperante. Embora mencionando alguns exemplos de tecnologias potencialmente sórdidas tais como os projéteis que podem guiar a si próprios e os insetos robotizados que serviriam como veículos minúsculos sem a necessidade de motorista humano, Belfiore destaca o gênio de algumas centenas de, em suas próprias palavras, cientistas malucos e engenheiros cujo trabalho de mais de cinco décadas que permaneceu fora do radar da exposição pública justifica a afirmação de alguns de que a maior fábrica de idéias dos EUA não foi o Bell Labs, o Vale do Silício, ou o Media Lab do MIT, mas sim a DARPA. Segundo ele, a agência reúne oficiais militares e cientistas, todos buscando idéias capazes de promover mudança de paradigma em áreas as mais variadas—desde energia, robótica, e foguetes até salas de operação sem pessoas, e aviões que podem dar meia volta ao mundo em algumas horas. A ênfase é trabalhar as idéias. Sem dispor de laboratórios próprios, nem mesmo uma equipe fixa, muito menos estrutura burocrática viciada, a agência vai buscar em universidades e empresas privadas quem possa tornar concretas as idéias concebidas num determinado projeto.

Veja-se o projeto do carro sem motorista. Através da lei “National Defense Authorization Act” de 2001, o Congresso americano determinou que “será um objetivo das Forças Armadas conseguir o emprego de tecnologia controlada remotamente, sem a intervenção humana, de modo que até 2015, um terço dos veículos de combate terrestres sejam sem-motorista.” No “DARPA Urban Challenge” (“Desafio Urbano DARPA”) realizado em 03/11/07, na Califórnia, que teve como antecessores os “Grand Challenges” de 2004 no deserto, a DARPA convocou a participação de diversas universidades e fabricantes de automóveis, e acabou premiando as equipes que construíram os veículos autônomos com melhor desempenho na tarefa de dirigir no trânsito realizando manobras complexas tais como junção, ultrapassagem, estacionamento e negociação nos cruzamentos. E o aprendizado adquirido pelos fabricantes de automóveis que participaram das competições já se fazem sentir nos dias de hoje. Em alguns modelos de carro, o chamado piloto automático pode ajustar a velocidade conforme o resultado da monitoração do trânsito a seu redor.

E a cada vez que delegamos o controle ao veículo, nos sentimos mais confiantes e confortáveis com um computador ao volante. Nesse ritmo, como diz Saletan, ao invés do falar ao celular, ler e enviar mensagens, o próprio ato de dirigir será considerado uma distração.

Ruy José Guerra Barretto de Queiroz, Professor Associado, Centro de Informática da UFPE

Investimentos e Notícias (São Paulo), 30/12/2009, 08:17hs, http://www.investimentosenoticias.com.br/ultimas-noticias/artigos-especiais/o-instinto-de-defesa-cientistas-malucos-e-o-corpo-eletrico.html


Nenhum comentário:

Postar um comentário