sexta-feira, 20 de julho de 2012

A Insolubilidade de Problemas Matemáticos e os Limites da Mente Humana


SEX, 20 DE JULHO DE 2012 01:57

Imagine o desafio de ter que mostrar que um dado problema da Matemática é insolúvel! Em alguns casos um tanto lendários, foram necessários mais de 2 mil anos para vencer o desafio. Já na Grécia antiga, matemáticos buscavam por métodos sistemáticos para resolver problemas geométricos tais como, usando apenas régua e compasso, dividir um dado ângulo em três partes iguais, transformar um círculo num quadrado de mesma área, ou dobrar um cubo (construir um outro cubo com o dobro de seu volume). Somente em 1837, o matemático francês Pierre Wantzel (1814-1848), mostrou que não existe método sistemático para trissectar um ângulo, tampouco para dobrar um cubo.

Que tal o desafio ainda maior de mostrar que não existe um método sistemático para decidir uma questão matemática expressa numa linguagem formal e precisa tal qual a lógica simbólica? Esse foi o desafio posto por um ícone da Matemática do século XX: em 1928, o matemático alemão David Hilbert (1862-1943) propôs a busca por um método geral para, ao receber um enunciado matemático representado numa linguagem formal e precisa como a lógica simbólica, descobrir se o enunciado era verdadeiro ou falso. Apropriadamente, esse problema ficou conhecido como o “problema de decisão”.
Muitos acreditavam que seria impossível haver um método geral para decidir toda e qualquer questão da Matemática, entre eles o matemático G.H. Hardy (1877–1947), de Cambridge, que se dizia esperançoso com a confirmação da impossibilidade, pois se houvesse “teríamos um conjunto mecânico de regras para a solução de todos os problemas matemáticos, e nossas atividades como matemáticos chegaria ao fim”. Para Hilbert, no entanto, seria apenas uma questão de tempo até que a Matemática encontrasse uma solução para o “problema de decisão”, pois, “para o matemático não existe o Ignorabimus... A verdadeira razão por que ninguém conseguiu encontrar um problema insolúvel é que, na minha opinião, não existe problema insolúvel” (1930). Essa era a sua resposta ao lema “Ignoramus et Ignorabimus” (“não sabemos e não saberemos”) enunciado em 1872 por seu compatriota, o fisiologista Emil du Bois-Reymond (1818-1916), exprimindo a crença nos limites do saber científico.

O método, ou “algoritmo”, pelo qual Hilbert procurava seria capaz de decidir, por exemplo, se questões antigas e tradicionalmente difíceis tais como a conjectura de Goldbach ou a hipótese de Riemann, são verdadeiras, ainda que nenhuma prova ou refutação desses enunciados fosse conhecida. Naturalmente, antes que a questão da solubilidade do “problema de decisão” pudesse ser resolvida, a noção de algoritmo tinha que ser matematicamente definida. Afinal de contas, apesar do conceito de algoritmo existir desde a antiguidade grega com o surgimento do método de Euclides para encontrar o máximo divisor comum de dois números, em pleno século XX não se tinha uma definição precisa, matemática, do que seria um algoritmo. Daí a inviabilidade de se demonstrar matematicamente a inexistência de um algoritmo para resolver o “problema de decisão”.

E aí entra em cena um personagem crucial no que veio a ser uma transformação radical na história do conhecimento científico. Alan Turing (1912-1954), matemático, lógico, criptoanalista e cientista da computação britânico, obcecado desde 1935 com a ideia de demonstrar matematicamente a insolubilidade do “problema de decisão”, foi fundamental no desenvolvimento da ciência da computação e proporcionou uma formalização do conceito de algoritmo, através do modelo matemático idealizado que ficou conhecido como "máquina de Turing". Tendo desempenhado importante papel na quebra do código criptográfico da máquina ENIGMA utilizada pelo exército alemão na Segunda Guerra Mundial, passou de herói de guerra a um fora-da-lei sujeito a tratamento quimico-hormonal forçado devido a sua homossexualidade, prática considerada ilegal à sua época na Grâ-Bretanha.
Encontrado morto em cenário indicativo de suicídio, Turing foi de fundamental importância na consolidação da ciência da computação, da noção de máquina universal, assim como da teoria da decidibilidade de problemas matemáticos, abrindo caminho para a demonstração de que certos problemas da Matemática são, de fato, insolúveis. A grande questão para Turing, no entanto, era saber se os limites do que pode fazer a mente humana seriam os mesmos que os limites do que uma máquina poderia fazer. Seríamos máquinas, e, em caso negativo, o que nos distinguiria delas?

Alguns subprodutos de sua investigação teórica, tais como o computador de propósito geral e a noção de inteligência artificial, serviram de base para os que alguns, tais como Luciano Floridi em “Philosophy of Information” (Oxford Univ Press, 2011), chamam de "Quarta Revolução Tecnológica - A Revolução da Informação". Na Primeira Revolução, Nicolau Copérnico mostrou que não estamos no centro do universo. Porém, seríamos ao menos seres privilegiados. Na Segunda Revolução, no entanto, Charles Darwin revelou que não somos animais superiores e totalmente desconectados dos outros animais. O consolo seria acreditar que nós humanos seríamos os únicos seres racionais. Veio a Terceira Revolução com Sigmund Freud trazendo a constatação de que não somos seres totalmente racionais. Restaria o orgulho de que, no plano das idéias, não haveria limites para os humanos. Qual o que: na Quarta Revolução, Alan Turing demonstra que existem problemas matemáticos insolúveis. E agora?
A bem da verdade, antes de Turing outros personagens da história da ciência moderna já questionavam a possibilidade de se alcançar a certeza científica.

Em filme documentário de rara excelência, tanto no que diz respeito à forma quanto ao que concerne o conteúdo, intitulado “Conhecimento Perigoso”, e originalmente exibido na BBC 4 em 08/08/2007, o jornalista britânico David Malone conta a história de quatro mentes brilhantes, entre eles Alan Turing, cuja busca obsessiva pelos limites da certeza científica os levou à beira da loucura e da autodestruição. O roteiro começa por Georg Cantor (1845-1918), matemático de origem germânica cujas teorias sobre infinitudes revelaram profundos paradoxos e abismos lógicos nos fundamentos da Matemática, além de confirmar matematicamente a existência de números “transcendentais” tais como o número pi. A seguir, Malone aborda as revelações sobre a incerteza na Física trazidas à tona pelo austríaco Ludwig Boltzmann (1844-1906), um dos principais responsáveis pela introdução do conceito de entropia, medida matemática da imprevisibilidade de um sistema dinâmico. Antes de chegar a Turing, o filme relata a saga de um outro brilhante pensador austríaco, Kurt Gödel (1906-1978), na busca por uma prova de impossibilidade de um outro problema proposto por Hilbert, a demonstração matemática de que a aritmética era consistente. Em 1930 Gödel mostra que há enunciados na aritmética que não podem ser verdadeiros e demonstráveis ao mesmo tempo, indicando que nem toda verdade matemática dispõe de uma prova.

Para Turing, no entanto, as incursões de Cantor e Gödel no universo das infinitudes e das verdades indemonstráveis da Matemática que abalaram os fundamentos da certeza científica se tornaram questões sobre a mente humana. Em 1950, Turing procura uma resposta científica à pergunta: máquinas podem pensar? Reconhecendo a dificuldade de se chegar a um acordo sobre o que significa pensar, Turing propõe um experimento que hoje é conhecido como Teste de Turing: ponha-se um humano conversando, por meio de terminal, com uma máquina e um humano, sem saber quem é a máquina, e que pretende distinguí-los, podendo fazer qualquer tipo de pergunta a cada um deles, cuja resposta pode ou não ser verdadeira. Segundo Turing, a resposta à pergunta se a máquina pode pensar será respondida na afirmativa se ela puder imitar um ser humano nas suas respostas, e, portanto, impedir que o humano do outro lado consiga distinguí-la de um ser humano. Esse é o chamado “jogo da imitação”.

Ruy José Guerra Barretto de Queiroz, Professor Associado, Centro de Informática da UFPE

8 comentários:

  1. Prof. Ruy, parabéns pelo texto, conseguiu resumir de forma interessante os avanços alcançados por Turing na área da computação. Apenas para deixar registrado: Alonzo Church encontrou uma solução equivalente à de Turing, quase à mesma época, utilizando uma abordagem diferente, baseada em funções. A abordagem de Turing, no entanto, foi muito mais elegante e acessível, e teve mais impactos práticos, por isso foi mais relevante e passou à história.

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  2. Daniel,
    Obrigado pelo comentário, bastante pertinente! De fato, Church foi inclusive o pioneiro no sentido da publicação da primeira prova matemática da insolubilidade de um problema da Matemática em 1936 com seu lambda-cálculo. Não haveria espaço para acrescentar esses dados ao texto de forma adequada. Obrigado mais uma vez pelo comentário!

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  3. Excelente texto.

    É interessante como grandes mentes como Aristóteles, Leibniz, Boole, Peano, Cantor, Russel, Godel, e outros mais cujos nomes me fogem a memória, criaram a base para os trabalhos de Turing.

    Partindo para o lado do empreendedorismo, com certeza a execução e o modelo de negócios são os pontos mais importantes para o sucesso ... mas fico pensando se as empresas e os fundos de investimento não têm deixado na margem, idéias com possíveis avanços científicos capazes de fazer a diferença na história.

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  4. A muito me foi dito que a Matemática era precisa, e ainda concordo com isso, mas sempre me foi mostrado em sala de aula que, uma soma de 1+1 pode não ser 2... em determinado momento isso é verdade. Então posso concluir que, a matemática só é precisa em algumas dimensões?

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  5. Prof. Ruy, Ótimo Texto... Gostaria de deixar uma intriga para refletir:

    “Qualquer processo aceito por nós homens como um algoritmo é precisamente o que uma máquina de Turing pode fazer” (Alonzo Church, matemático).”

    Sabendo que a Inteligência Artificial é a procura constante da construção do método cognitivo dos pensamentos dos seres humanos, tendo como mote principal, elaborar um modelo de nosso pensamento, transformando-os em processos computacionais, tentando assim, construir uma cadeia de explicações algorítmicas baseados nos processos mentais humanos. A I.A. enfatiza a elaboração de teorias e modelos da Inteligência em programas de computador.

    Levando um pouco à frente os pensamentos e ideias de Turing, será que os avanços da Inteligência artificial irão fazer com que “conversemos com as máquinas? “

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  6. Oi Professor Ruy,

    Eu assisti sua palestra sobre o Legado de Turing e achei bastante interessante!

    Eu escrevi um texto sobre o documentário Conhecimento Perigoso : http://marathoncode.blogspot.com.br/2012/02/conhecimento-perigoso-parte-i.html
    http://www.estudarcomputacao.com/2009/05/crise-da-matematica-e-ciencia-da.html

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  7. Obrigado, Wladimir!
    Parabéns pelo texto sobre o documentário!

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  8. Minha contribuição para o Ano Turing:
    http://marathoncode.blogspot.com.br/2012/08/ano-turing.html

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