segunda-feira, 9 de março de 2009

Investimento, Bolha e Confiança

ARTIGOS ESPECIAIS

09/03 - 12:15

Investimento, Bolha e Confiança

São Paulo, 9 de março de 2009 - Ao que tudo indica, muitos americanos ainda não entenderam o que aconteceu com a economia. Como é que tudo ocorreu de forma tão rápida e tão devastadora? Quem é o responsável? As respostas do governo e do mercado estão dando algum resultado? Numa tentativa de analisar as possíveis respostas, o documentário Inside the Meltdown da série FRONTLINE exibido em 17/02/09 pela rede americana de TV pública PBS investiga as causas da pior crise econômica dos últimos 70 anos, e como tem sido a resposta do governo americano. O filme mergulha nos bastidores de eventos importantes como o acordo com a Bear Stearns, o colapso da Lehman Brothers, o socorro à gigantesca seguradora AIG e o famoso pacote de resgate do sistema financeiro de US$700 bilhões. Tudo parece ter começado em 2007 com os primeiros sinais de um previsível estouro da bolha do mercado imobiliário, e aí o receio passou a se espalhar entre as grandes instituições financeiras que formam o coração de Wall Street. Já no início de 2008, incomodado com os bilhões de dólares de maus contratos de financiamento imobiliário, o banco de investimentos Bear Stearns se viu cercado por rumores de que em breve quebraria. A partir daí, a confiança no sistema se rompeu e tudo parecia ir rapidamente de água abaixo.

Não faz muito tempo, uma outra bolha havia estourado, e tudo aconteceu também de forma assustadoramente rápida e arrasadora: quando a chamada “bolha da internet” rompeu em Março de 2000, muitos investidores assistiram ao “sumiço” de cerca de US$3 trilhões. Quando o índice NASDAQ chegou aos 5.132 pontos em 10/Março/2000, isso significava 500% acima do seu nível em 09/Agosto/1995, dia em que a Netscape se lançou na bolsa de valores. Em 23/Setembro/2002, o índice NASDAQ fechou em 1.185 pontos. A queda de 18 meses nos preços das ações resultou numa perda de US$4,4 trilhões de valor de mercado, incluindo US$$1 trilhão nas 150 maiores empresas do Vale do Silício. Era o maior colapso do mercado de ações na história do capitalismo industrial. E as perguntas que ficaram no ar foram semelhantes às dos dias de hoje: Por que tão rápido? Quem foram os responsáveis? Afinal, o que incitou a incrível escalada das empresas de ponto-com em Wall Street? Um outro documentário da série FRONTLINE, dessa vez intitulado sarcasticamente “Dot Con” (um jogo de palavras envolvendo “dot com”, i.e. ponto-com, e “con”, esta última significando “vigarice”), examina as forças financeiras por trás da subida sem precedentes e da queda da noite para o dia da economia da internet. A sinopse do programa faz a pergunta: será que o público tinha ficado cego pelos sonhos de pequenas fortunas e vida fácil, ou será que os bancos de investimento americanos manipularam o mercado de IPO (“Initial Public Offering”, evento de entrada na bolsa de uma empresa de capital até então fechado) e exploraram a confiança do público?

Numa entrevista ao Washington Post em 2002, época em que o escândalo da Enron ainda ocupava as manchetes, o diretor e produtor Martin Smith, ao ser perguntado se teria havido manipulação indevida, diz que sim, pois nunca tinha surgido tantas empresas não-rentáveis sendo oferecidas ao público como bons investimentos e elogiadas por tantos analistas de mercado. A explosão da mídia financeira da época só contribuiu para uma maior desinformação. No final das contas, adianta Smith, o público tem que assumir a responsabilidade, mas aqueles que sabiam mais não estavam ajudando a informar e educar o público, ao contrário, estavam explorando. Numa série de entrevistas realizadas com especialistas e partícipes da crise, a primeira pergunta começava afirmando que o mito da internet como uma força “democratizante”, “nivelando o campo de jogo” e tudo o mais, havia sido exposto, no mínimo no que concerne aos mercados financeiros. Em outras palavras, longe de “democratizar o mercado” e “nivelar o campo de jogo”, parecia que a nova mídia associada à bolha da internet – as redes de tv a cabo 24 horas no ar como CNBC e CNNfn, assim como outros portais online como Motley Fool, TheStreet.com, e outros, e as corretoras online – ao invés disso produziram novos demagogos (sob a forma de capitalistas de aventura, banqueiros de investimentos, analistas e jornalistas de negócios), e lhes foi permitido, como nunca dantes visto, manipular o público investidor. Haveria verdadeiramente algo sobre a própria internet, como veículo, que teria alimentado a bolha?

A resposta de Thomas Frank (editor-fundador da revista The Baffler, editor e autor de Harper's, além de autor de One Market Under God: Extreme Capitalism, Market Populism, and the End of Economic Democracy (2000) eThe Conquest of Cool: Business Culture, Counterculture, and the Rise of Hip Consumerism (1997)), traz algumas observações importantes, e ainda bem atuais. Frank lembra que democracia através do investir parece ser um tema recorrente na indústria financeira, voltando à tona sempre que um “bull market” (termo associado a um clima de otimismo no mercado de ações) realmente impressionante está estourando os indicadores – os anos 1920s, 1960s, e 1990s. Afinal de contas não é possível haver bull market sem a participação em massa, e não há como haver participação em massa sem que o público em geral se sinta seguro em participar. Uma outra razão pela qual Wall Street periodicamente espalha tais fantasias elaboradas de democratização é que eles buscam um mundo no qual pessoas comuns se imbuíram da liberdade de pensar por si próprias, compraram ações, e estariam prontas a concordar que os impostos corporativos têm que ser diminuídos, que a Seguridade Social tem que ser privatizada, que os sindicatos têm que ser desmontados e seu trabalho terceirizado, que as regulações têm que ser removidas, e que o ambientalismo é um engodo. Embora Wall Street não dê boas vindas à democracia econômica, durante os anos 1990s fez um grande esforço para abraçar uma espécie de democracia cultural, anunciando que a hora do “smart money” e dos pequenos e espertos empreendedores e investidores havia chegado. Daí, quando a internet finalmente desembarcou na bolsa (em 1995 com a Netscape), já estava perfeitamente plugada no script existente. Seu maior impacto teria sido como um símbolo e como um investimento. Por toda parte se ouvia como a internet tinha trazido mais avanços sociais em poucos anos do que se tinha notícia, como esse dispositivo milagroso e misterioso tinha transferido o poder para as pessoas a um ponto que parecia incompreensível, como tinha invertido as velhas hierarquias de chefe e subordinado, de primeiro mundo e terceiro mundo. Era Deus em pessoa descendo à terra e nos dizendo que os mercados eram democracias.

Como resultado das investigações do governo americano sobre possíveis irregularidades, a “Securities and Exchange Commission” (o equivalente à comissão de valores mobiliários) entrou com uma ação contra o Credit Suisse First Boston (CSFB), banco de investimentos e corretora de valores mobiliários, por “práticas abusivas relacionadas à alocação de ações em IPOs ‘quentes’”. Na ocasião, a comissão simultaneamente anunciou que o CSFB havia concordado em pagar um total de US$100 milhões correspondendo à ação movida pela comissão e a uma outra ação movida pela NASD Regulation, Inc. (NASDR). O CSFB também concordou em não mais participar em violações e irregularidades, e em instituir novos procedimentos concebidos para prevenir a recorrência do tipo de má conduta que deu origem a essa ação. Muito se tem feito para assegurar que a próxima geração de empreendedores possa evitar os problemas ocorridos na época da bolha da internet, ou “pelo menos cometer menos erros”, conforme David Kirsch, professor da Universidade da California em San Diego e criador do “Digital Archive of the Birth of the Dot Com Era” (arquivo digital do nascimento da era ponto-com) mais conhecido como o “Dot Com Archive” (dotcomarchive.org). Iniciado em Junho de 2002, quando a maioria das pessoas estavam fazendo o possível para esquecer os anos precedentes de exuberância empreendedora aparentemente irracional, o arquivo recebeu no mês seguinte de um parceiro de uma firma de capital de aventura uma doação de todos os planos de negócios que a firma tinha recebido de 1999 a 2002 (documentos cobrindo algo como 1.100 empresas). Atualmente o arquivo contém cerca de 6,4 milhões de mensagens de e-mail, mementos, apresentações de slides, fotografias, material de marketing e bancos de dados representando milhares de empresas. Esses dados têm começado a revelar insights interessantes sobre a bolha ponto-com. Alguns deles apareceram num artigo intitulado “Was there too little entry during the Dot Com Era?”, de autoria de Brent Goldfarb, David Kirsch e David A. Miller (publicado no Journal of Financial Economics 86(1) 100-144 (2007)): (1) Prevalecia uma crença de que a estratégia de negócios conhecida como “Get Big Fast” (Torne-se Grande Depressa) era apropriada para negócios de internet. Essa estratégia deixou de ser a preferida somente após ser resolvida a incerteza sobre sua eficácia no início de 2000. (2) A ascensão e queda do tamanho dos investimentos de capitalistas de aventura era mais proeminente na internet e em outros setores de tecnologia da informação. Enquanto que o total de investimento de capital de aventura (VC) caiu após o declínio no mercado de ações em 2000, investimentos de VC relacionados à internet caíram mais e os IPOs relacionados à internet quase cessaram. (3) Taxas de saídas de empresas ponto-com são comparáveis ou talvez menores que taxas de saída de iniciantes em outras indústrias nos seus anos formadores. Taxas de sobrevivência de empresas ponto-com com cinco anos se aproximam de 50%. Essa taxa de sobrevivência é mais baixa que indústrias de manufatura, nas quais aproximadamente 2/3 de indústrias iniciantes sobrevivem , mas é igual ou maior que as taxas de sobrevivência em várias outras indústrias. (4) A sobrevivência não se relaciona ao recebimento ou à quantidade de financiamento de “private equity” (tipo de atividade financeira realizada por instituições que investem essencialmente em empresas que ainda não são listadas em bolsa de valores, com o objetivo de alanvancar seu desenvolvimento). Empresas financiadas por VCs não teriam mais ou menos chances de sobreviver. Não há evidência de que o retorno no investimento em private equity foi positivo ou que, condicional à sobrevivência, a classificação quanto ao tráfego de internet era mais alta para empresas apoiadas por investimento de private equity.

Em sua página no portal da Universidade da California em San Diego, David Miller, um dos autores, diz que o artigo dá uma contribuição mais ampla à teoria das bolhas de investimento e “crashes” (quedas acentuadas e inesperadas do preço das ações) em geral – inclusive a possibilidade de melhor entender os eventos recentes em mercados como o imobiliário, “public equities”, e os investimentos baseados em contratos imobiliários. A grande sacada é que o comportamento de manada entre os administradores de fundos financeiros relativamente bem informados (como os capitalistas de aventura, “hedge funds” - denominação que originalmente significava "fundo de cobertura", mas que se tornou mais geral para denominar instituições de investimentos alternativas -, e bancos de investimento) podem levar a um ciclo do tipo infla-estoura porque esses intermediários estão gerenciando os fundos de investidores menos informados (como fundos de pensão, investidores institucionais, e indivíduos). Uma manada se forma entre os administradores de fundos quando um número suficiente deles decide que um certo tipo de título ou ativo é um bom investimento que o restante acha ótimo para “acumular” sem investigar os fundamentos. Essa manada pode ser temporária e auto-corretora à medida que os administradores de fundos conhecem melhor o investimento com o decorrer do tempo. No entanto, investidores fora do círculo não estão tão bem informados, e portanto não confiam completamente nesses administradores, que aliás não estão jogando com o próprio dinheiro. O artigo mostra que uma vez que a bolha começa a estourar, os investidores podem achar que o ótimo é simplesmente retirar todo o dinheiro, justamente na hora em que os administradores de fundos corrigiram suas estratégias em reação ao colapso da bolha.

Miller conclui se perguntando o que é preciso na atual crise financeira, segundo sua teoria, para que o mercado volte à normalidade, e responde afirmando que nós investidores precisamos ver alguma evidência de que os intermediários financeiros estão investindo de forma sábia novamente. Uma injeção de dinheiro governamental na indústria financeira pode ajudar, se isso significar oferecer aos intermediários uma chance de demonstrar que se pode confiar neles novamente. Do contrário, podemos ficar paralisados num mau equilíbrio no qual ninguém investe porque os intermediários não se mostraram confiáveis, e os intermediários não podem demonstrar que são confiáveis porque ninguém está investindo.

(Ruy José Guerra Barretto de Queiroz, Professor Associado, Centro de Informática da UFPE)

Gazeta Mercantil (São Paulo), 09/03/2009, 12:15hs, http://www.gazetamercantil.com.br/GZM_News.aspx?parms=2379665,408,100,3

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